
Eu não podia me permitir sangrar em público. Por isso, eu corria para o back da minha vida para me esconder. Tentava de algum jeito fazer aquele sangramento estancar. Procurava por qualquer coisa que pudesse maquiar o buraco e depois de um tempo, retornava para frente do palco e outra vez, na pele da atriz, entre uma e outra versão feliz de mim eu tornava a existir.
Eu continuava a minha atuação procurando fazer a melhor interpretação do roteiro da vida, que todos esperavam que eu vivesse e acreditavam que eu era capaz de ser. Não podia decepcioná-los. A platéia era exigente demais e suas expectativas sobre a minha atuação, parecia já estar pré determinada.
Minha mãe estava lá na primeira fila, esperando que eu pudesse ser a melhor versão de uma advogada ou médica ou pedagoga e tão logo viria a cena da namorada, noiva e esposa e consequentemente, a versão da mãe, que como ela, eu também seria. Meu pai ao seu lado aparentemente não tão exigente, ainda que não houvesse dito, esperava a melhor versão de uma grande empresária, tinha por expectativa vê os seus próprios passos, agora trilhados por mim como a primogênita, que não só aprende o ofício do pai, como passa a cumpri-lo mesmo depois de grande.
Ainda, na primeira fila o meu irmão mais novo, às vezes, torcendo para que eu pudesse cometer os erros na marcação do palco e provar que eu não era tão boa quanto meus pais acreditavam e idealizam que eu era. Contudo, também esperava que eu fizesse algo inusitado, que surpreendesse à todos, algo espantos, ao ponto que os fizesse chorar de emoção ou jogar tomates de decepção.
Nas fileiras seguintes, estavam todos os meus líderes religiosos, todas as pessoas que de alguma forma tiveram alguma influência na construção daquela versão imaculada e aperfeiçoada. Todos pelo propósito de me tornar um deles, um exemplo irrepreensível, que nunca erra. Eu poderia ter asas, porém, teria que mantê-las cortadas. Eu poderia caminhar, entretanto, não poderia sair pela porta. Eu poderia ser quem o que eu quisesse ser, mas antes, teria que fazer o que já estava escrito, já estava predestinado que eu fizesse.
“Se estiveres triste, sorria. Se estiveres cansada, seja animada. Se estiveres confusa, não questione, apenas faça o que está escrito.” Eu não poderia permitir-me errar. Eu não podia vacilar os passos. Eu não podia trocar as falas. Eu não podia não sorrir. Eu não podia não estar bem. Eu não podia sangrar em público, por isso, escapava para o back da minha vida, onde eu tentava de algum modo dar um jeito nas feridas, chorar as lágrimas escondidas e encontrar de alguma maneira um jeito de escapar dali.
Eu podia ser todas as versões naquele palco, menos a versão real de mim.
Por: Francielle Santos
(Foto: Reprodução / Contagious Realism)