
Estávamos na garagem do prédio dele. Ele tinha acabado de estacionar, eu saí do carro com os patins nas mãos e no breve segundo em que o patins encostou na porta do carro e ele ficou (impressionantemente muito) irritado, eu silenciei tudo ao redor e dentro do meu coração uma única coisa eu pude ouvir: “eu não posso mais ficar!”
Voltávamos de uma das nossas melhores tardes juntos no parque, o dia que tiramos para que ele me ensinasse a andar de patins. Eu já tinha passado dos dezoito anos quando tive uma crise existencial e quis ter os meus patins. Acho que nunca pedi patins nas cartinhas que escrevia para o Papai Noel, mas em algum momento entre os meus 18 e 22 eu senti a necessidade absurda de tê-los, como se tivesse voltado a ter 8 anos e quisesse desesperadamente a nova boneca de bebê com fraldinhas (uma infância inteira apegada a mamadeiras, chupetas e fraldas de bonecas com caras de bebês, que eu vestia com roupas de bebês de verdade – fazer o que, eu nunca gostei de Barbies!)
No dia em que fui comprar os patins, eu saí da sessão de terapia em uma quarta-feira fim de tarde com um turbilhão de sentimentos e lembranças da infância.Tinha chorado, silenciado, falado sem parar, perdido o fôlego e colocado-me no meu próprio colo enquanto estava sentada na poltrona na frente do meu terapeuta. Terminei certa de que precisava preencher as lacunas, tapar os buracos e tinha que começar pelos patins. Eu precisava ter coragem de correr o risco de cair de novo, para poder seguir em frente com ousadia na vida (ousadia da menina). Aprendi a andar de bicicleta com seis anos, levei uns tombos bem feios nas primeiras tentativas sem rodinhas, mas nunca mais larguei a bicicleta. Os patins era o desafio novo, apesar de que agora, eu sentia que o desafio era muito maior.
O que aconteceu foi o óbvio, eu cheguei em casa feliz da vida com os patins como se o Natal tivesse chegado em Agosto, os provei toda boba e ainda ousei ficar em pé escorada na cama, mas não arrisquei tentar andar sozinha e ele acabou jogado debaixo da minha cama. Quando o Natal daquele ano chegou, o “homem da minha vida” estava na sala da casa do meu pai conversando como meu tio (que também é como um pai pra mim) enquanto eu colocava a mesa para a ceia. Era a primeira vez que eu passava o Natal tão bem acompanhada. Estava todo mundo perplexo, inclusive eu, que já tinha batido no peito que aquilo não aconteceria comigo.
Meses depois, os patins foram encontrados enquanto ele procurava não sei o que debaixo da minha cama. O olhar apaixonado e encorajador foi imediato. Ele me garantindo que eu aprenderia sem grandes arranhões, que não me soltaria, que me ajudaria a andar de mãos dadas até eu conseguir patinar sozinha. E foi das nossas tardes a mais alegre! Mesmo eu brava e com um medo do tamanho do mundo e ele com a paciência e o apoio do tamanho do universo. As minhas mãos apertando o braço dele com toda a minha força implorando para não me deixar cair e ele rindo, com os pés firmes no chão provando segurança.
Quando eu dava por mim, o medo ia ficando para trás a cada deslizada torta, a cada beijo inesperado que ele me dava na testa, os olhos presos nas minhas pernas incertas e a voz confiante a dizer: “tá vendo, vida? você consegue, você consegue…” Ele insistiu em mim o quanto pode. Não sai patinando sozinha naquele dia. Tinha muitos dias para treinar ainda, mas aquela tarde os meus tão desejados patins tinham sido finalmente estreados, eu tinha gargalhado feito criança e estava feliz por estar ali com ele.
Até eu descer do carro. Às vezes, um mísero momento equivocado pode mudar tudo. Bem verdade que aquele não era o primeiro momento equivocado da nossa história, mas era um instante, de um dia inteiro repleto de outros instantes. Subimos do -1 até o 12º andar, ele destrancou a porta, entramos, coloquei os patins na lavandeira, voltei para a sala e ele protestando sem parar sobre o quase arranhão dos patins que eu deixei encostar na porta do carro (só para constar caros jurados, digo, leitores, a porta não arranhou, ele checou minuciosamente!) .
Sentei no sofá e assisti como se prestasse atenção num filme de ação na TV. Não era a primeira vez que ele se exaltava daquele jeito, ficava todo vermelho e falava tão rápido que eu precisava focar bem para acompanhar todos as vírgulas, exclamações, interrogações… Em todas as vezes eu me silenciava e esperava a chuva passar. Ele se cansava, parava de falar, sentava do meu lado e penso que tinha um minuto de revelação dos acontecimentos pela minha ótica, começava a pedir desculpas envergonhado, jurava que não ia falar daquele jeito de novo e eu desculpava.
Contudo, naquela tarde foi diferente, eu o desculpei, mas não podia mais desculpar eu mesma por tolerar aquilo. Um filme passou pela minha cabeça, várias mulheres da minha família silenciadas diante de insultos, berros, reprovações… que sempre perdoaram os homens de suas vidas por amor ou porque tinham que ficar com eles. Todos os riscos de berros se tornarem tapas, socos, pratos arremessados, fechaduras arrombadas… (e alguns de fatos se transformaram no pior). O meu coração doía espremido no peito, eu o amava tanto, tanto tempo esperando pela chegada dele na minha vida, tão aprovado por todo mundo, eu tão apegada a família dele, não queria julgá-lo daquele jeito, porém eu não podia mais correr o risco de viver com a possibilidades daqueles fantasmas, “e se um dia.. ” eu pensava.
Ainda no fim daquela tarde, com o apartamento escurecendo com a luz do dia lindo que já partia, eu arrumei pela última vez as minhas coisas entre o quarto dele e a minha bolsa. Escovei calmamente, pela última vez o meu cabelo com a escova que ele tinha comprado para eu pentear os meus fios embaraçados, pois eu sempre esquecia a minha em casa. E quando peguei os meus patins guardados no que seria a sua nova casa, ele entendeu o que falava o meu silêncio.
Teve outra crise de falas altas. Eu não tinha mais nada para falar. Já tinha falado em todas as manhãs de domingo quando conversávamos sobre tudo tantas e tantas vezes, sempre voltando aos mesmos erros, sempre voltando as mesmas promessas. Eu entendia que não podia mudá-lo. Além disso, eu não queria um amor que me fizesse sentir medo. Estava exausta e certa de que não podia mais ficar, mesmo que partir estivesse quebrando o meu coração em pedacinhos.
Voltamos eu e os meus patins para casa e eu nunca mais tentei patinar.
Por: Francielle Santos
(Foto: Reprodução / Olivia Doerfler)