
Não falta muito para virar a minha estação! E eu que sempre negligenciei essa data, nunca falei tanto dela o tempo todo. Estou apavorada e impressionantemente serena, se é que é possível ser tempestade e calmaria ao mesmo tempo.
Tenho pensado muito na minha avó materna. Esses dias tentei escrever um texto sobre ela, mas me dei conta que pouco sabia. Minha mãe nunca dá muitos detalhes, porque apesar de quase 29 anos que minha avó faleceu, todas às vezes que ela vem à assunto a minha mãe chora. E eu desde pequena, sempre achei esse sentimento impressionante, sempre me perguntei se um dia a minha mãe superaria essa emoção que a embargava e a fazia chorar. (neste exato momento, me percebo embarga, talvez, finalmente eu esteja chegando perto de entender e sentir)
Eu não conheci a minha avó. Ela morreu de cancer três anos antes de eu nascer, com 46 anos, em 1992. Tudo foi muito rápido. Aquele tipico caso de descobrir a doença tarde demais. A minha mãe já tinha vindo da Bahia para São Paulo, já namorava o meu pai e falava com a minha avó por cartas que levavam dias para chegar. O pouco que minha mãe conta sobre a minha avó é impressionante. Ela gerou 16 filhos, com um espaço de tempo entre eles quase mínimo, dos quais teve dois abortos espontâneos e dois faleceu logo depois de nascer. Dos doze vivos, três homens e nove mulheres – sendo a minha mãe a mais velha de todas e consequentemente, quem ajudou a minha avó com os demais. Minha mãe às vezes deixa escapar que nunca viu a minha avó e meu avô discutirem, sobre o respeito indubitável e o cuidado entre o casal. Na podreza, minha avó esperava o meu avô todos os dias chegar da roça para comer (uma das minhas tias faz isso até hoje com o marido) e todos juntos, sentados em esteiras de palha jantavam. Se tinha só um ovo cozido, ela repartia em pedacinhos para todos por igual. Minha mãe também sempre diz que minha avó não tinha quase nada em casa, mas tudo era de uma limpeza e organização impecável, que mesmo com pouco, ela e os irmãos estavam sempre limpinhos e bem cuidados; “mãe era como galinha garnizé, tinha todos os filhos debaixo das asas” – palavras da minha mãe.
Sinto um vazio por não tê-la conhecido. Uma sensação estranha de que tenho coisas que só para ela faria sentido contar. A pandemia e todos os revezes que ela nos obrigou a experienciar me aproximou na força da minha mãe. A necessidade de ter sempre algo para fazer por e com ela, versos, a preocupação do pior alcançar a minha casa, me endureceu para algumas coisas e me amoleceu para outras. Penso, que toda filha busca fora ou dentro de casa a referência feminina. E eu levei tempo demais para valorizar a minha neste sentido. É mais do que reconhecer a mãe e a avó como mulheres fortes. É sobre o quanto as nossas raízes são determinantes na nossa própria força interior.
Ainda há um abismo entre eu e minha mãe. Assim como entre eu e minha avó. Contudo, reconhecê-lo e tentar atravessá-lo, é revolucionário.
Ultimamente, tenho escrito cartas que talvez nunca sejam enviadas e aproveitando essa deixa, quero enviar aqui a minha primeira pequena carta à minha avó:
Querida vó Maria de Lurdes,
queria tanto ter te conhecido pessoalmente, sentido o seu cheiro, o calor do seu abraço, admirado o brilho dos seus olhos, passeado com os dedos nos seus cabelos negros, ouvido as suas histórias, o seu riso, provado o seu café, o seu cuscuz.. queria mais ainda, ter falado sobre minha mãe, o quanto pra ela ter deixado a sua casa, a senhora e os irmãos foi duro – uma decisão que até hoje causa reviravoltas por dentro. tanto sei, como senti isso na minha pele quando chegou a minha vez. minha mãe até hoje não sabe lidar com despedidas, eu também não. ela é igualzinha a senhora, sofre imensamente todas as vezes que eu voou para longe – acho que mais ainda, por pensar no tanto que a senhora deve ter sofrido quando ela saiu. ela te ama tanto, que todas as vezes que seu nome ecoa por aqui, ela chora. foi difícil a sua partida pra ela e toda a vida depois disso. a sua partida tão cedo ainda é dolorosa pra mim – minha mãe tinha uma expectativa de vida baixa por isso, e eu herdei isso também. tenho a sensação de estar envelhecendo mais rápido do que deveria. queria ter tido a chance de falar sobre tudo isso contigo. tenho buracos na minha história que não sei como fechar. sinto que estou sempre caminhando sob um fio em cima de um abismo prestes a romper. não sou nada forte como a senhora foi ou como a minha mãe tem sido. a senhora se orgulharia tanto dela se visse o tanto que ela se esforçou e continua se esforçando até hoje. não tenho a garra de vocês ou a esperança inabalável por dias melhores. não sei lidar com as minhas perdas e meus fracassos. não sei lidar com essa sensação de impotência diante de tantas coisas na minha vida. Ah vó, eu tenho pensando tanto em desistir! Queria que estivesse aqui para amparar um pouco as questões da minha mãe. Queria que estivesse aqui para me dar colo – já sou uma mulher adulta, mas me sinto tão pequena. Sinto saudades vó, saudade do que nunca tivemos!
Por: Francielle Santos
(Foto: Alzheimers.net)
Fantástico texto, na mensagem e na forma, tive o prazer de conhecer e conviver com as minhas avós, mas sempre gostei mais da materna, alguém que me deixou muitas saudades, já faleceu há 27 anos, esperou por mim para nós meus braços partir, mesmo com alzaimer, não sabendo quem eu era, partiu nos meus braços.
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penso na virtude de ter esse previlégio de ter as avós por perto em algum ou muitos momentos da vida // minha avó paterna morava em outro estado, e eu a via uma a duas vezes por ano, mas não criamos laços profundos // amei o fato do texto ter trago essa memória tão especial em ti. Grata por me deixar saber nesse comentário ☺️
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o que dizer? me emocionei lendo esse texto. cada palavra reverberou aqui dentro. intenso, reverente, cheio de amor e saudade. ah! a tua vó tem o mesmo nome da minha mãe.
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o quando amei ler teu comentário, não tem medida ! 💕 // e amo as coincidências da vida
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aaah! 🥰
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