todas as coisas que eu te escreveria se eu pudesse

a todos aqueles que escrevem com a alma

para caio fernando abreu

“o mundo não se importa com quem escreve.

o mundo se importa com a criação de um novo banco,
de um novo partido político, com a bolsa de valores,
mas com escritores? não.

me respondam
como pagaremos as contas no final do mês se vocês não acreditam em nós?
como pagaremos o gás, a internet, a água
se nossos livros são menos importantes do que a queda do dólar
do que a fofoca das revistas de celebridades
do que a correria de quem precisa bater o ponto?

aliás
quem paga a nossa conta
quem compra o nosso pão de cada dia
quem, vendo o escritor faminto da necessidade de ser
visto, concede-lhe exposição?

o mundo fecha os olhos porque é mais fácil não
enxergar aqueles que observam demais. os que têm
trabalho redobrado de decifrar o indizível, tatear
o imperdoável, e escrever sobre os sentimentos mais
complexos, sujos e profanos da humanidade.

quem é que pega na minha mão pra aliviar a dor frequente de me derramar?

quem se importa com as dores crônicas dos escritores
que sentiram a dor da despedida e depois escreveram
sobre ela para se salvar, e acabaram salvando os outros também?

os primeiros a abraçarem as dores dos amores perdidos
nas esquinas de São Paulo; que resolveram pintar
as cidades mais bonitas do que elas são; que se atreveram a
imaginar outros cenários através da escrita?

e quem é que alimenta os meus sonhos?
coloca comida no coração das minhas angústias
preenche a lacuna dos dias tristes e deprimidos,
compreende os vazios que moram em mim?
quem é que escreve a minha história?
quem se senta comigo pra ouvir falar do quanto fui
machucado, exposto e maltratado?

quem é que me escuta?

quem é que, sabendo de todas as minhas dores, também escreve sobre elas?

quem é que se importa com as pessoas que deixei ir
embora
com as dores que tiraram os sapatos, pisaram os pés no
carpete e entraram na minha casa?

o mundo não está preparado pra quem escreve.
pros que sobem até o último andar de um prédio
comercial e, abraçados à chance de partirem, decidem
permanecer. pros que não se jogaram das pontes, mas
se jogaram no ácido que é existir [e saber da própria
existência, porque muito não sabem].
pros que colocaram suas próprias vidas em livros,
textos, contextos, ficção.
pros que tornaram a palavra sua própria amiga
e dela foi confidente, consciente, mais-que-íntimo,
coração.

é isto: quem escreve tem o coração amarrado no
cansaço do mundo.

mas estamos todos cansados, não é mesmo?
e já não existe amor pra nós.
o mundo nunca se preparou pra aqueles que escrevem. “

página 235 – 237